segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Sobre o Povo


Há uma poesia belíssima de Cora Coralina intitulada ORAÇÃO DO MILHO. Ao lê-la preparei esta reflexão.

ORAÇÃO DO MILHO

Senhor, nada valho!
Sou a planta humilde dos quintais e das lavouras pobres.
Meu grão perdido por acaso, nasce e cresce na terra descuidada.
Ponho folhas e hastes e se me ajudardes, Senhor, mesmo planta de acaso solitária, dou espigas e devolvo, em muitos grãos, o grão perdido inicial, salvo por milagre, que a terra fecundou.
Sou a planta primária da lavoura, não me pertence a hierarquia tradicional do trigo e de mim não se faz o pão alvo universal.
O Justo não me consagrou o pão da vida, nem lugar me foi dado nos altares.
Sou apenas o alimento forte e substancial dos que trabalham a terra onde não vinga o trigo nobre; sou de origem obscura e de ascendência pobre, alimento dos rústicos e animais de jugo.
Quando os deuses da Hélade corriam pelos bosques coroados de rosas e espigas; quando os hebreus iam em longas caravanas buscar na terra do Egito o trigo dos faraós; quando Rute respigava cantando nas searas de Booz e Jesus abençoava os trigais maduros, eu era apenas o Bró, nativo das tabas ameríndias.
Fui o angú pesado e constante do escravo na exaustão do eito.
Sou a broa grosseira e modesta do pequeno sitiante.
Sou a farinha econômica do proletário; sou a polenta do imigrante e a miga dos que começam a vida em terra estranha.
Alimento de porcos e do triste mu de carga, o que me planta não levanta comércio, nem avantaja dinheiro.
Sou apenas a fartura generosa e despreocupada dos paióis,
Sou o cocho abastecido donde rumina o gado,
Sou o canto festivo dos galos na glória do dia que amanhece,
Sou o cacarejo alegre das poedeiras à volta dos seus ninhos,
Sou a pobreza vegetal agradecida a vós, Senhor, que me fizestes necessário e humilde.
Sou o milho!


Lendo esta belíssima criação de nossa Cora Coralina, não conseguí evitar uma associação entre o milho e o povo. Acostumâmo-nos a singularizar pessoas e não povos. A História é feita de nomes: alguns odiados, outros memoráveis, nomes estes oriundos do anonimato, geridos na multidão de sem nomes...

Ao povo cabe o múnus de ora forjar heróis, ora mártires... Dele saem as forças armadas ou os voluntários da ajuda humanitária ao modo de um supra povo...
Ah, esse povo que elege seus líderes e se verga sob o peso do esquecimento daquele que alçou ao poder... Esse povo cheio de fé e boa-fé que coloca sua vida - orações vivas - no altar dos dias...de trabalho...todos os dias ao levar à mesa, por vezes, mirrado, seco pão temperado de suor que alimentará um novo líder... Povo que vota como quem diz "eu confio em você, você saiu de mim"... e se queda triste qual mãe a se entristecer com a ingratidão do filho...

Em cada batalha da História, em cada guerra que ainda hoje se trava - povo contra povo -, quantas vidas ceifadas para que a certeza de um povo se imponha em suas verdades ou mentiras , para que um povo se perpetue em seus avanços e recuos... Povo-alimento dos grandes nomes, "fartura generosa e despreocupada" dos grandes feitos...segue o povo no anonimato tecendo a História, imolando-se e tornando-se cinza de corpos sem medalhas ou condecorações, sem constar dos livros de História...
Povo que se insurge, por vezes, em revolta; povo às vezes expulso, refugiado em outros povos, emigrante forçado: é o Estado voltando as costas a quem o criou, à semelhança de pai a expulsar o filho de casa... Povo que é braços, pernas, pés e mãos, corpo que alimenta o cérebro da Nação...

Esse povo "que põe folhas e hastes" em qualquer pedaço de chão retribui com "espigas" e muitos novos, heterogêneos grãos à terra de homens... Povo que canta, dança e rí esquecendo suas tristezas, que tem orgulho de ser povo na alegria de seu folclore, de suas lendas, de seu saber "não científico" e, que se entristece com as armas, com os novos hábitos, com a incompreensão de outros povos, com o jeito do Futuro se impor...

Povo que não quer deixar de ser povo... que entende da sua "humildade e necessidade"...que sabe cantar - qual galos - a alegria de gerar nomes; que alimenta com fartura de risos e amor aquele que com suas palavras e atos alimentará sonhos de povos...

Povo que, por vezes, envereda por caminhos que não escolheria...se pudesse. Povo que se dilui em outros povos e vê triste e impotente a destruição de sua cultura... povo que retribui enriquecendo a cultura que os absorveu...

Ao pensar em "povo", penso em mim. Nada tenho da singularidade que me destacaria do povo. Cabem-me todas as palavras da poetisa e, dou-me conta, agradecida, de que minha "humildade" é essencial e necessária. Sim, sou mesmo a planta comum e forte a lançar meus grãos-mensagens neste chão - ora fértil, ora estéril ... Da hierarquia do "trigo" nem cogito...sou planta hibridizada por beija-flores... fortes-frágeis beija flores...

Um comentário:

  1. Gostei da analogia. E acho que lhe faz justiça, sua inteligência nos nutre. Foi muito bom ter encontrado você.

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