terça-feira, 20 de abril de 2010

Vitrines de Amsterdã - João Pereira Coutinho

É porque existe um espaço só nosso que há liberdade de pensarmos como entendemos.

RECEBO CONVITES de amizade todos os dias. Por e-mail. Alguém deseja ser meu amigo e convida-me para integrar uma lista virtual em que existem dezenas ou centenas ou milhares de amigos virtuais. A pretensão encanta-me e remete-me para memórias de infância. No recreio da escola, alguém se aproximava, alguém perguntava: "Queres ser meu amigo?".


A comparação é talvez ofensiva para a infância: nesses tempos, havia pelo menos o contato real com um ser humano real. Hoje, nem isso: a palavra "amizade", usada na internet, é uma traição da sua natureza verdadeira. A amizade não é um convite. É um acaso. O melhor de todos os acasos.


E quem é amigo de dezenas, ou centenas, ou milhares de pessoas, obviamente não é amigo de uma só. A amizade implica tempo, disponibilidade. E, como no amor, existe na amizade uma dimensão de sacrifício e exclusividade que o ruído cibernauta contamina. Na minha vida profissional, conheço dezenas de pessoas. Mas os meus amigos são tão poucos que não excedem os dedos de uma mão.


Recebo convites de amizade todos os dias. Todos os dias nada respondo, uma forma educada de recusar perguntas que não se fazem. Mas sei que pertenço a uma espécie em vias de extinção.


Conta o "Courrier Internacional", na sua edição portuguesa, que o maior site social é o Facebook, com os seus 350 milhões de utilizadores. Se fosse um país, o Facebook seria o terceiro mais povoado, depois da China e da Índia.


Um admirável mundo novo? Será. Mas um mundo novo traz dilemas novos. E novas ameaças. Não falo da ameaça metafísica, ou existencial, de sermos incapazes de manter ligações significativas com alguém. As ameaças lidam também com a privacidade, ou com o valor que conferimos à privacidade num mundo onde nos expomos e espiamos.


Ainda segundo a revista, e só nos EUA, um adolescente em cada cinco e um jovem adulto em cada três já enviou fotografias ou vídeos seus onde estão nus ou seminus. Mas não é preciso entrar nessas doces pornografias para ver nas "redes sociais" o que os turistas encontram nas vitrines de Amsterdã: a revelação pública da intimidade. Em fotos ou palavras. Lamentos ou pensamentos.


Alguns especialistas discordam. E defendem que, no mundo moderno, não faz mais sentido defender a esfera privada. Porque tudo é privado; ou, inversamente, tudo é público, o que facilita a comunicação, a partilha e, em certos casos, a denúncia da violência e da arbitrariedade.


Não estou convencido. Creio, aliás, no oposto: a conquista da privacidade, só possível no Ocidente com a emergência do Cristianismo, não foi apenas importante ao garantir aos homens um refúgio último e pessoal em que a consciência, e não a pressão da turba, é soberana. A conquista da privacidade, conferindo a Deus o que é de Deus e a César o que é de César, permitiu também o culto de outras liberdades.


Como relembra o escritor Jordi Soler no mesmo número da revista, é precisamente porque existe um espaço nosso, e só nosso, que existe também a liberdade de pensarmos como entendemos; de nos reunirmos com quem quisermos; e de nos expressarmos sem temer as interferências do poder político com a sua pata potencialmente censória.


Quando expomos voluntariamente a nossa privacidade, estamos voluntariamente a entregar a desconhecidos o que levou séculos a conquistar e preservar. Uma rendição da nossa identidade. Não será de espantar, por isso, que comecem a surgir vozes preocupadas. Como Alex Türk, presidente da Comissão Nacional de Informática e Liberdade, da França. Para Türk, todos os interessados deveriam poder solicitar às autoridades judiciais e aos servidores de internet o "direito ao esquecimento". O direito a podermos apagar do mundo virtual as pegadas que fomos deixando, e que outros foram copiando, sobre os nossos trajetos passados.


Num dos seus contos mais notáveis, "Funes el Memorioso", Jorge Luis Borges construiu uma parábola sobre um homem incapaz de esquecer. O conto de Borges não é apenas a descrição sardônica do infeliz e insone Funes, que após acidente juvenil passou a registrar, com precisão patológica, cada minuto, gesto, palavra ou imagem do mundo em volta. Uma coleção interminável que o impede de viver normalmente. O conto é uma elegia sobre a importância do esquecimento. Porque sem esquecimento não existe liberdade para continuarmos ainda e um pouco mais.
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*Filósofo português. Escritor. Colunista da Folha.
Fonte: Folha online, 20/04/2010
jpcoutinho@folha.com.br

Um comentário:

  1. A liberdade de pensar jamais alguém ousará cortar. No meu ponto de vista, podemos pensar como queremos, num espaço só nosso ou partilhado. Podemos pensar como queremos e naquilo onde nosso pensamento chegar, a respeito de tudo e de nada, sempre que o quisermos e esse pensamento ou pensamentos permanecerão na esfera privada se o pretendermos. Caso contrário...podemos partilhá-los e dar a conhecer um pouco ou muito de nós. Penso que é mais um problema de opções, opções certas, bem pensadas e medidas antes de sairem da esfera privada, do espaço que é só nosso. Pois também não devemos andar por aí a chocar moralmente os que se cruzam connosco, seja nesta auto-estrada virtual, seja na auto-estrada ou caminho real. Ser um cidadão do mundo exige bom senso e respeito pelo outro e per si em todas as circunstâncias e espaços.
    Minha amiga, pois na vida real, posso dizer que sou amiga de todo o mundo, mas escolho meus amigos verdadeiros, aqueles que privam comigo, me conhecem melhor e que convido a vir a minha casa e com quem divido o meu espaço nesse dia e nessas horas. Também além de minha família que é numerosa...contam-se pelos dedos de uma mão. Por aqui, tenho que dizer comecei por ser escolhida e que raramente escolhi. E quando escolhia, fazia-o depois de observar a sua forma de pensar e de partilhar. Não aceito amizades que não tenham algo a partilhar e que se escondam atrás de um muro só para espiar.
    Gosto de ter sua amizade, sabe porquê? Porque pensa e faz pensar e porque aquilo que partilha sente-se que o sente e que não está aqui para cerimónias e diplomacias quando for caso disso. A frontalidade, a educação, a verdade, a honestidade e a amizade são valores que prezo muito em si.
    Aceite o meu fraternal xi-coração.
    Nau

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