domingo, 25 de outubro de 2009

Sobre fundamentalismo



Este é o quarto texto da série Reflexões sobre Religião. Seria interessante ler o prefácio no texto número um (Ao pé da letra).

O termo "fundamentalista" surgiu nos Estados Unidos, em 1909, quando os irmãos Lyman e Milton Steward publicaram "The Fundamentals: a testimony of the truth", em doze volumes, cujo conteúdo se centrava na exortação dos protestantes a um retorno da interpretação literal da Bíblia. Este termo é comumente associado à religião; porém,encontrâmo-lo em outras áreas, por exemplo, econômica, científica, política, ideológica...Em todos, a viga mestra é dada pela fiel observação a certos princípios que são tidos como verdades acabadas, que devem ser aceitas por todos - "para seu próprio bem" - e com rigor extremo.

No campo da Ciência, uma atitude fundamentalista rejeita que determinada teoria possa ser refutada: isso leva ao estagnar do progresso científico e ao crédito, por vezes, de paradigmas falsos.

No campo político, são exemplos os grandes ditadores que, ao imporem a idéia de que determinado regime político é o melhor, viam-se quase como os portadores da "Boa Nova" política,não admitindo à História um curso normal, pois que criam estar a concretizar o utópico futuro idealizado pelo povo que os alçou ao poder...



Na Economia, a postura fundamentalista condiciona ao Mercado - e somente a este - a grande e única lei que deve reger o processo produtivo, dando vida ao chamado "capitalismo selvagem"...Já no campo ideológico, divide as pessoas em classes, aponta culpados pela divisão, divide países, como de certa forma aconteceu com a "sacralização" da palavra de Karl Marx...

Fundamentalismo, no campo religioso, é uma concepção através da qual o livro sagrado (Bíblia, Alcorão, por exemplo) deve ser lido, interpretado de uma forma literal e, seguidas à risca suas instruções, pois a Palavra não permite interpretações...Este tipo de fundamentalismo normalmente surge de uma insatisfação com determinado sistema valorativo, de um desamparo político que abre caminho, através de uma teodisséia, para o estabelecimento de padrões de conduta embasados numa volta a sistemas tradicionais.

Aqui podem-se abrir dois caminhos:

1- uma rejeição da modernidade, pois é inconcebível o aerar de novas idéias, visto que as diretrizes a serem seguidas já foram apontadas pelo próprio Deus , constam do livro sagrado e todos os males vieram ou virão do seu descumprimento;

2- não haverá uma negação da modernidade "latu sensu", mas sim a submissão desta aos parâmetros ditados por uma teocracia, ou seja, uma sacralização do moderno.



Apesar de encontrarmos facetas do fundamentalismo em várias religiões, normalmente lembramo-nos - nós ocidentais - do Islamismo . Particularmente depois do ataque às Torres gêmeas , islamismo passou a ser considerado - mesmo que erroneamente - um sinônimo de fundamentalismo...Ao largo do fato de que a imensa maioria de islâmicos pratica sua religião isenta de fanatismo, a mídia lhe concedeu esse estigma embasada no que eu poderia chamar de predisposição fundamentalista:afinal de contas, "o Islão foi desde o início uma religião da espada que glorifica as virtudes militares" e " Maomé é recordado como um valente guerreiro e um comandante militar competente" (ambas as citações de Samuel Huntington, in O choque das civilizações)...

Referí-me atrás à sensação de desamparo que antecede a atitude fundamentalista.No fundamentalismo religioso, a legitimidade da postura nem sempre advém de uma leitura literal do texto sagrado e sim, de uma adesão à releitura deste texto por um líder político.Aqui, carisma e liderança continuam inseparáveis; porém, dão voz a povos que anseiam por valores diferentes que contrabalancem o roto paradigma em que se crêem inseridos pela modernização ditada pelo mundo ocidental.Amparados numa autoridade divina, e portanto incontestável, readquirem, pois, orgulho próprio e com ele...a certeza absoluta de que estão no caminho certo...



É esse o aspecto do fundamentalismo que mais nos assusta! Embora nem todos os fundamentalistas, particularmente os islâmicos, sejam partidários de uma interpretação literal do Alcorão, de uma supressão da modernidade, da violência (como o Taleban, por exemplo), o que é digno de atenção é o aspecto ditatorial com que ele se reveste. Nesta tentativa de "conversão" de tudo o que afronta os pilares de sua fé, a sacralização do mundo é vista como bem imprescindível e a extinção dos "novos hereges" serve a um fim nobilíssimo: o cumprimento da palavra divina! Justificam-se assim os massacres de povos que ousam ter leituras diversas do Divino e os ataques terroristas.Como que cruzados modernos, é necessário invadir, anexar, ampliar territórios em nome de uma interpretação que se acredita única e final...Como os valores são extraídos de dogmas, Amor pode muito bem justificar uma conversão pela força, se necessário...

É interessante notar que, em quase todas as religiões, o Amor e a Vida são alçados à categoria do Sublime. Então, como se justificariam os massacres, guerras santas à luz do fundamentalismo? Aqui ocorrerá uma deturpação útil: o assassinato é tido como uma missão do guerreiro divino na luta contra o "Mal" encarnado e, a própria morte e seu martírio, um agraciar supremo da divindade, uma medalha pelo "bom combate"...

Inegavelmente, uma atitude fundamentalista religiosa afigura-se-me uma defesa paradoxal a verdades que são alçadas a patamares inalcançáveis pelos mortais, apenas conhecidas em sua íntegra (alcance e finalidade) pelo Divino e, por isso mesmo, impossíveis de serem galgadas por simples mortais...Constroem-se muros em torno de virtudes na tentativa de reconstrução do que já se encontra esfacelado, pois subjugado a exo- padrões.Neste jogo de defesas surge na figura do outro o símbolo do "Mal": destruí-lo é preservar-se; é deixar intactas a cultura, as convicções, as tradições, as certezas...Em um mundo em que tudo está em constante mutação, em que progressos tecnológicos não acompanham a evolução da própria mente que os criou, em que leis mudam ao sabor dos acontecimentos ou de quem ocupa o poder, em que líderes tropeçam nas esquinas da História, é mais seguro ancorar-se no porto das verdades inquestionáveis...O problema é que neste porto há um farol: e é a partir dele que se atira para abaterem -se os barcos que carregam a tolerância...



Da intolerância cega ocorre a refratariedade ao diálogo, a intransigência, o fanatismo, a violência, a morte em nome de um Deus...Enquanto os homens se arvorarem em proprietários de uma verdade acontecerão massacres em nome da verdade de alguns; enquanto os homens se digladiarem em torno da posse de um Deus, acontecerão guerras santas...

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