domingo, 25 de outubro de 2009

Ao pé da letra


Dou início com essa postagem a uma série de reflexões sobre Religião. Pretendo discutir temas como Dogma, Intolerância religiosa, Fundamentalismo, Fanatismo. Antes que seguidores das várias religiões me crucifiquem, antecipo que não pretendo gerar mal-estares, nem carregar uma bandeira de determinada religião ; e sim, analisar, de forma limitada e subjetiva, algumas questões que ultrapassam o campo religioso. Antevejo bem o caminho cheio de minas que vou percorrer; porém, minha proposta neste espaço é me forçar a pensar sobre determinado tema; à semelhança de um exercício mental, aqui venho para - antes de tudo - expor meu pensamento. Nesse dar-se a conhecer tenho recebido pérolas: meus amigos virtuais! Para eles - e aos que ainda virão - acima de tudo meu respeito: às suas posições divergentes ou convergentes, ao seu silêncio...

A seguir, um excerto que encontrei e inspirou-me a postagem de hoje:

E-mail enviado por um estudante de teologia de Boston para Laura Schlessinger, uma personalidade do rádio americano que distribui conselhos para pessoas que ligam para seu show.

Recentemente ela disse que a homossexualidade é uma abominação de acordo com Levíticos 18:22 e não pode ser perdoada em qualquer circunstância.

O texto abaixo é uma carta aberta para Dra. Laura, escrita por um cidadão americano e também disponibilizada na Internet:

"Cara Dra. Laura

Obrigado por ter feito tanto para educar as pessoas no que diz respeito à Lei de Deus. Eu tenho aprendido muito com seu show, e tento compartilhar o conhecimento com tantas pessoas quantas posso.

Quando alguém tenta defender o homossexualismo, por exemplo, eu simplesmente o lembro que Levítico 18:22 claramente afirma que isso é uma abominação. Fim do debate.

Mas eu preciso de sua ajuda, entretanto, no que diz respeito a algumas leis específicas e como seguí-las:

a) Quando eu queimo um touro no altar como sacrifício, eu sei que isso cria um odor agradável para o Senhor (Levítico 1:9). O problema são os meus vizinhos. Eles reclamam que o odor não é agradável para eles. Devo matá-los por heresia?

b) Eu gostaria de vender minha filha como escrava, como é permitido em Êxodo 21:7. Na época atual, qual você acha que seria um preço justo por ela?

c) Eu sei que não é permitido ter contato com uma mulher enquanto ela está em seu período de impureza menstrual (Levítico 15:19-24). O problema é: como eu digo isso a ela ? Eu tenho tentado, mas a maioria das mulheres toma isso como ofensa.

d) Levíticos 25:44 afirma que eu posso possuir escravos, tanto homens quanto mulheres, se eles forem comprados de nações vizinhas. Um amigo meu diz que isso se aplica a mexicanos, mas não a canadenses. Você pode esclarecer isso?

Por que eu não posso possuir canadenses?

e) Eu tenho um vizinho que insiste em trabalhar aos sábados. Êxodo 35:2 claramente afirma que ele deve ser morto. Eu sou moralmente obrigado a matá-lo eu mesmo?

f) Um amigo meu acha que mesmo que comer moluscos seja uma abominação (Levítico 11:10), é uma abominação menor que a homossexualidade.Eu não concordo. Você pode esclarecer esse ponto?

g) Levíticos 21:20 afirma que eu não posso me aproximar do altar de Deus se eu tiver algum defeito na visão. Eu admito que uso óculos para ler. A minha visão tem mesmo que ser 100%, ou pode-se dar um jeitinho?

h) A maioria dos meus amigos homens apara a barba, inclusive o cabelo das têmporas, mesmo que isso seja expressamente proibido em Levíticos 19:27. Como eles devem morrer?

i) Eu sei que tocar a pele de um porco morto me faz impuro (Levítico 11:6-8), mas eu posso jogar futebol americano se usar luvas? (as bolas de futebol americano são feitas com pele de porco)

j) Meu tio tem uma fazenda. Ele viola Levítico 19:19 plantando dois tipos diferentes de vegetais no mesmo campo. Sua esposa também viola Levítico 19:19, porque usa roupas feitas de dois tipos diferentes de tecido (algodão e poliester). Ele também tende a xingar e blasfemar muito. É realmente necessário que eu chame toda a cidade para apedrejá-los (Levítico 24:10-16)?

Nós não poderíamos simplesmente queimá-los em uma cerimônia privada, como deve ser feito com as pessoas que mantêm relações sexuais com seus sogros (Levítico 20:14)?

Eu sei que você estudou essas coisas a fundo, então estou confiante que possa ajudar.

Obrigado novamente por nos lembrar que a palavra de Deus é eterna e imutável.

Seu discípulo e fã ardoroso".


Devido ao grande valor que é atribuído à Bíblia por judeus e cristãos, surgiu um natural desejo de aprofundamento dos estudos sobre esta obra e, consequentemente, do sentido de sua mensagem. Esse foi o ponto de partida e o fundamento de uma ciência chamada Hermenêutica, que consiste no estudo dos princípios gerais de interpretação bíblica, em cujos métodos inclui-se a exegese (interpretação crítica dos textos). Da interpretação de textos religiosos ampliou-se o seu foco para além da Religião, vindo também a História, o Direito e a Filosofia a serem campos de seu interesse.
Como a Bíblia é aceita como "a palavra de Deus", não há um princípio hermenêutico único, podendo ser destacados, por exemplo, quatro tipos de interpretação: literal, moral, alegórica e anagógica. Desses , ater-me-ei à interpretação literal.

E, o que é uma interpretação literal? É aquela que é feita isenta de uma contextualização. Especificamente em relação à Bíblia, este tipo de interpretação está intimamente associada à convicção de que a mensagem divina ( frases ou palavras isoladas) não permite leituras.Aqui não se leva em consideração, por exemplo, as diversidades de estilos encontradas nos vários momentos históricos da compilação dos textos bíblicos.

Em Direito, há na Hermenêutica Jurídica, entre vários princípios que se complementam, um que enuncia que um texto legal, quando redigido de forma clara, objetiva, não necessita ser interpretado, não havendo, pois, a necessidade de se buscar o sentido (finalidade) e o alcance da norma (seu campo de incidência): é o Princípio "In claris cessat interpretatio". Este, usado de uma forma isolada dá margem a injustiças, à cristalização e à petrificação da norma jurídica ("dura lex, sed lex"..., "summa jus, summa jura"...). No campo da interpretação bíblica, levará à intolerância religiosa, ao fundamentalismo e a graves distorções do significado do texto religioso.

Interpretar um texto - religioso ou não - é inferir, isto é, é um olhar sobre o implícito e o explícito. É um processo dependente de aspectos linguísticos, extralinguísticos e cognitivos. Após uma decodificação inicial terá lugar uma formulação das representações mentais sobre a mensagem em sí. Analisar-se-ão os argumentos.

O que são argumentos? Esclareço com um exemplo: se digo, por exemplo, que na União Européia a moeda é o Euro, temos aqui uma informação. Porém, se a essa informação acrescento quais os efeitos, os motivos da criação dessa moeda, faço nascer um argumento. Um argumento, pois, é aquilo que explica, faz a defesa de uma idéia,justifica uma proposição.; sem ele temos fragmentos de informação carentes de um sentido e de retórica.
Num texto religioso, como nos demais, há uma sucessão de argumentos e suas consequentes imbricações no real interno (de cada pessoa) e também no real externo, aqui representado pelo conjunto de pessoas (seitas, grandes troncos religiosos como o Cristianismo, o Islamismo, por exemplo). O que ocorre numa interpretação literal, a meu ver,é uma dessalinização dos argumentos.Ao retirá-los do mar contextual em que se encontram, perdem o sabor que os caracterizou à época em que foram escritos...

Sabe-se que a comunicação é uma via de mão dupla: a relação transmissor/receptor de uma mensagem é permeada por subjetividades,é dependente de uma reflexa compreensão para que não ocorram "ruídos" (falhas de comunicação) . Pois bem, ocorrem ruídos quando retiramos um argumento de seu contexto.. Sabemos que no tempo das Escrituras havia uma tradição oral; ao se passar da oralidade para a escrita insere-se todo um contexto pré-literário , vivencial que deu origem à uma necessidade de um texto escrito...Esquecemo-nos que houve uma intenção, uma utilização da oralidade para fins - entre outros - retóricos.

Fazendo uma analogia, do estudo da Literatura tem-se que os períodos literários (por exemplo, Classicismo, Romantismo, Realismo...) são uma adequação aos reclamos de uma época,retratam insatisfações, refletem determinado momento histórico . Há gêneros literários.Ora, com a Bíblia isso não é diferente: nela notamos diferentes gêneros literários, os quais nos indicam diferentes contextos sociais, diferentes situações, diferentes momentos, diferentes necessidades, diferentes finalidades, diferentes públicos-alvo...diferentes compiladores...
Creio que o maior furto ( ou porque não? roubo) que se pode fazer em termos de interpretação de um texto - seja ele qual for - é retirá-lo de seu momento histórico...Os abusos de interpretação ou o dissecar de palavras e textos ao pé da letra podem conduzir a situações lamentáveis como a conduta da apresentadora do programa de rádio exposta acima e a consequente resposta irônico-crítica do ouvinte...Levam à impressão de que - como disseram criticamente certos estudiosos -" a Bíblia é um livro onde cada qual procura o que deseja e sempre encontra o que procura..".

Um comentário:

  1. Minha querida amiga, Os temas aqui tratados exigiam que fizessemos um conjunto de seminários e de foruns. Não vou comentar, mas digo-lhe a penas que a forma como reflecte e como partilha essa reflexão sobre os assuntos aquidesenvolvidos é bastante pedagógica. Parabéns Leninha! Continue, pois está dando uma ajuda, contribuindo para que muitos, lendo, acompanhem seu raciocínio e se identifiquem ou não, isso não importa aqui, o que é importante, neste mundo contemporâneo, é que em pouco tempo eu possa confrontar meus dilemas.
    Fraternal abraço da amiga
    Nau

    ResponderExcluir

Campanhas que eu aprovo

Gentileza Gera GentilezaDoe mais que um clique
Procure uma entidade beneficente:
Diga não ao bloqueio de blogs